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Mostrando postagens de fevereiro, 2011

Em defesa dos adjetivos

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Adam Zagajewski Ditadores e generais costumam dispensar tudo o que não seja verbo e substantivo Muitas vezes nos mandam cortar nossos adjetivos. O bom estilo, conforme dizem, sobrevive perfeitamente sem eles; bastariam o resistente arco dos substantivos e a flecha dinâmica e onipresente dos verbos. Contudo, um mundo sem adjetivos é triste como um hospital no domingo. A luz azul se infiltra pelas janelas frias, as lâmpadas fluorescentes emitem um murmúrio débil. Substantivos e verbos bastam apenas a soldados e líderes de países totalitários. Pois o adjetivo é o imprescindível avalista da individualidade de pessoas e coisas. Vejo uma pilha de melões na bancada de uma quitanda. Para um adversário dos adjetivos, não há dificuldade: Melões estão empilhados na bancada da quitanda. Todavia, um dos melões é pálido como a tez de Talleyrand quando discursou no Congresso de Viena; outro é verde, imaturo, cheio de arrogância juvenil; outro ainda tem faces encovadas e está perdido num silêncio

Anita e a mulher dos sapatos vermelhos

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Nilto Maciel Conversava com minha pupila Anita Sabóia, na sala de minha casa, quando o carteiro gritou meu nome. Sempre faz isso, apesar de haver uma campainha acoplada ao muro. Apressei o passo (ele não anda, vive a correr, sacola repleta de cartas, embrulhos, cobranças), para não deixá-lo esgoelar-se. A caminho de Anita, rasgava o invólucro. Ao chegar ao pé dela, o livro de Carlos Herculano Lopes se mostrou em toda a sua beleza: A mulher dos sapatos vermelhos. Na capa, além das pernas, dos sapatos, do chão e do título, o selo “Geração Editorial”. Abanei as orelhas e fui direto à folha dos dados de catalogação: Crônicas brasileiras, 2010. Você gosta de crônicas? Não muito. Prefere que gênero? Conto. São muito semelhantes. E me pus a dizer tolices: Hoje o conto curto e a crônica são como irmãos gêmeos. Ela sorriu e tomou a palavra: Já namorei um gêmeo, que mandava o outro me testar. Conseguia enganá-la? Muitas vezes. Retomei a posição de falante: Existe até um híbrido de conto curto e

Noiva

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Luci Afonso Eu a avistei assim que cruzou o portão de madeira. O vestido comprido a fazia levitar. Era alta e esguia como um pé de eucalipto, e os longos cachos morenos estavam a ponto de explodir como a inflorescência vermelha do flamboiã. — A casa será ali — disse ela, apontando para o canto oposto ao qual eu me encontrava. Escolheu um pequeno seixo e o enterrou no futuro local da construção. — Está lançada a pedra fundamental — ela proclamou, sorrindo. (Foi impressão minha, ou nessa hora o sol brilhou mais forte?) Tirou as sandálias e atravessou o riacho, molhando os pés e a barra do vestido na água fresca. Depois, veio até a mata e abençoou cada árvore, tal qual madrinha dadivosa. Chegou perto de mim. — Que espécie é essa? — perguntou. — Não sei — respondeu o homem que a acompanhava. — Está quase morta, nem flores produz mais. Podemos cortá-la, se a senhora quiser. Ela acariciou meu corpo ressequido e meus braços suplicantes. — Não, eu quero revivê-la — e me enlaçou com carinho.

Tio Céu

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Luci Afonso   — Mãe, é Deus no telefone! — grita meu filho, assustado e curioso. — Alô! Aqui é Deus! Quem está falando? — pergunta a voz brincalhona, que reconheço de imediato. — Sou eu, tio! — Eu quem? — ele insiste, como se eu ainda fosse criança. — Eu, uai! — respondo, imitando o forte sotaque perdido em terras candangas. — Vou apostar o número do seu telefone na Megassena da virada. — Por quê? — Uai, liguei mil e duzentas e quarenta e uma vezes enquanto estive em Brasília, e dava sempre ocupado ou desligado. Então, como se diz, larguei de lado — ele gosta de exagerar, adora a expressão “como se diz” e tem a mania de inventar números quebrados. — Desculpe, é que às vezes desligo mesmo. — Pra quê, Sá? Telefone é pra ficar ligado! Tento explicar minha rotina: durante a sesta diária, se estou sozinha, desconecto o aparelho fixo para não ter de me levantar e ir até a sala; o celular funciona normalmente. Quando meu filho está em casa, ele atende o fixo, com instruções para me acordar